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Valentina — Contos Urbanos 1#



Era noite, mas não tão noite assim. Estendia-se como um tapete luminoso uma avenida movimentada que detinha o nome de um qualquer, nada mais que um desconhecido para aqueles tantos motoristas. Trânsito parado e ensurdecedor. Havia uma bruma azulada que recobria tudo. Por uma pequena fresta, descobriu-se um olho em uma esquina qualquer. Valentina observava a movimentação com um certo pesar e inquietação. Aqueles olhos castanhos perdiam-se naquele emaranhado, suas íris coloridas pelos pontos vermelhos. O vento brincalhão soprou algumas mechas ruivas dos cabelos dela, brincou um pouco com elas e, como criança birrenta, as jogou aos seus lábios onde elas aderiram ao seu brilho labial. Dedos finos e elegantes fizeram o trabalho de retirada delicada.

Valentina voltou-se para dentro do recinto forrado de vermelho e se acomodou em uma suave poltrona negra, esticando as pernas longas como um gato que se espreguiça e relaxando logo após. A sala estava razoavelmente cheia: várias garotas se amontoavam nos pufes, meditando calmamente sobre alguma coisa que Valentina nunca tivera tempo ou vontade de perguntar. Talvez porque ela mesma não gostaria de ser incomodada enquanto refletia sobre sua própria solidão. A maioria delas estava quieta, ouvia-se apenas o tilintar ocasional de brincos ou pulseiras deslizando nos braços. Suas roupas eram justas e por vezes transparentes, deixando à mostra muito mais do seus corpos do que seria aceitável em um lugar que não fosse esse: seios roliços transpareciam com mamilos entumecidos através do tecido fino, coxas eram firmemente delineadas por imitações de couro. Um exército triste, vestido para uma batalha triste.

Lentamente, Valentina ergueu a cabeça ruiva ao relógio. Ainda eram oito horas da noite. Ainda ouvia um barulho enorme vindo das ruas. Suspirou. Há não muito tempo atrás — o tempo, tão estagnado — havia desejado que as horas transcorressem devagar, se arrastando pelos cantos como um murmúrio calmo. Sua inocência a fazia julgar que o início tardio do trabalho iria amainar o sofrimento que estava por vir. Mesmo depois de anos, ainda se pegava desejando que as horas que antecediam a noite pudessem ser duplicadas para algo menos efêmero. No entanto, na maior parte das vezes, só desejava que tudo viesse e acabasse rápido. Já havia adquirido a consciência necessária pra desligar os sentidos e simplesmente encarar o que estava por vir com sua melhor interpretação de desejo. Suspirou novamente e repreendeu a si mesma: não era hora para melancolia. O segundo suspiro atravessou o silêncio.

De repente, a única porta do recinto rangiu, cortando o silêncio. Estava sendo aberta e aparentemente alguém não queria ser notado. Falha. Na menor oportunidade, um corpo esgueirou-se como um bichinho assustado para dentro do quarto. Certamente era um bichinho assustado. Uma garota com não mais que quinze anos surgiu pela fresta mínima. Sustentava no rosto duas chamas verdes que estavam molhadas, acompanhas de um rosto inchado que seria até graciosamente alvo se não fosse o tom de vermelho adquirido no choro. Todas as garotas dentro do quarto a encaravam. Ela sentiu o peso do olhar, derrubando o seu próprio ao chão logo após o clique da porta. Parecia frágil ao andar dura e vagarosamente para o quartinho com chuveiro no fundo da sala. A essa altura, todas as que estavam no quarto sabiam o que havia acontecido: seu andar torto, suas roupas rasgadas, sua expressão de dor ao se mover. Ela ainda chorava. Valentina caiu em um redemoinho de nostalgia que estava longe de ser das mais felizes: lembrou-se de quando era ela a estar no lugar da jovem. Recordou-se dos demônios.

A compaixão a dominou e ela levantou-se. O chuveiro havia sido desligado há algum tempo, mas a garota continuava lá em silêncio. Ao se aproximar com uma toalha e bater levemente na porta, Valentina ouviu um soluço.
— Venha, querida...

Sua voz era calma e cheia de ternura. A garota saiu nua do banheiro e foi logo abraçada pela toalha que Valentina carregava. Antes, no entanto, foi possível notar os arranhões e roxos que recobriam seu abdome, seios e quadris. Ela parecia ainda mais frágil, mergulhada na fofura branca da toalha. Silenciosamente, uma das meninas providenciou algumas peças de roupa para ela e as deixou na mesinha que sustentava um candelabro. Sequer tinha voz para agradecer, então soluçou. Valentina encaminhou a trêmula garota para o pufe que estava sentada e deixou que ela tomasse a liberdade — e o fôlego para suportar a dor — de sentar. Quando o fez, Valentina pegou um pente e começou a desembaraçar o ninho que estava aqueles cabelos castanhos. A pobre garota ainda chorava.

A porta se abriu de supetão, sobressaltando todas as pessoas ali presentes. Não mais que de repente, uma voz carregada de cinismo ecoou pelo ambiente e reverberou pelas paredes.
— Hmmm... Vejo que está cuidando bem da nossa carne fresca, minha putinha vermelha.

Todas as cabeças baixaram, e a pequena jovem se encolheu. Valentina reconheceria aquele homem mesmo evitando o contato visual. Um cheiro de colônia masculina e de suor encheram o quarto, vindo do único ser que Valentina conhecia que cheirava a sexo e perfume barato. Eliezer veio em sua direção, rodeou-lhe o corpo até ficar atrás da ruiva e colou os corpos com força. Valentina pôde sentir sua ereção enquanto Eliezer lambia-lhe a nuca. Ela permaneceu imóvel.

— Primeiro um oi para minha boneca rosada... — pontuou o final da frase com um aperto nas nádegas da moça - e então...
Eliezer voltou a ficar de frente para a pequena garota, encarando-a com proposital projeção da púbis ao encontro do rosto que encarava o chão. Havia na expressão dele o ar animal que já lhe era tão característico quando seu corpo alto e pouco musculoso, seus ombros que sustentavam a cascata negra e lisa que eram seus cabelos.
— Levante-se, pequena. Quero vê-la.
A voz era autoritária, carregada de desejo selvagem e ordem. Apesar disso, a pobre garota permaneceu imóvel. Aliás, todo o movimento que seu corpo fazia era involuntário, dado o tremer intenso que tomava conta da sua silhueta magra. Valentina, de cabeça baixa, pôde ver lágrimas caindo na toalha repousada em seu colo.
De repente, um guincho baixo de dor escapou entre os dentes da garota quando Eliezer encheu a mão com seus cabelos e puxou seu corpo mole para cima. Eliezer rugiu.

— Eu disse para se levantar. Eu mando, você obedece. Agora, não me faça ficar estressado... — Eliezer deslizou a mão livre pelo corpo trêmulo e nu da garota, pinçou um mamilo entre os dedos — Você quer descansar, não quer? Não quer ser minha visitada dessa madrugada, certo?... Porque eu suponho que você esteja cansada... Talvez eu tenha ido com um pouco mais de sede ao pote do que deveria. — A mão de Eliezer deslizou pelo abdome marcado da garota, indo parar entre suas pernas — Mas veja pelo meu lado... Eu não tive uma visitada ontem. Não pude colocar nenhuma putinha de quatro e fodê-la até que ela esteja bem aberta para mim... — Ele afunda dois dedos entre os pequenos lábios da garotinha e simula movimentos sexuais. Ela geme de dor — Isso, putinha, foi desse jeito que você gemeu para mim alguns minutos atrás. E até que você ainda está bem abertinha...

A jovem trincou os dentes, tentando conter os gemidos de dor que lutavam para escapar entre seus lábios. Lágrimas jorravam em cascata no seu rosto, uma expressão de agonia absoluta tomando conta de suas feições. Eliezer lhe levanta a cabeça e lambe os lábios entreabertos de onde escapam gritos contidos. Eliezer riu de contentamento.

— Por que você geme tanto, putinha? Acha que não fui carinhoso com você? Você devia agradecer por ter sido eu a foder seus buraquinhos hoje. Imagine se fosse um homem qualquer, um imundo, um sem nome de pau mole... - Eliezer riu sozinho, jogando a cabeça para trás. Estancou o movimento com os dedos e os trouxe aos lábios da garota, úmidos de sangue e líquido transparente.
— Você está vendo essas gostosas, gatinha? Todas elas foram testadas por mim. Claro, eu só ofereço mercadoria de qualidade aos meus clientes... Tenho a obrigação de garantir um produto que os agrade e satisfaça suas necessidades. — Com força, Eliezer colou o corpo magro da garota ao seu, fazendo o ar fugir dos pulmões da pobre criatura. Agarrou-lhe as nádegas com as duas mãos em um falso abraço e fez questão de roçar o volume da calça no montinho de poucos pêlos pubianos da mocinha. Arranhou-lhe a pele e introduziu um dedo ao ânus da pobre alma. Depois dois. A garota urrava de dor.
— E quando eu digo todas as necessidades, estou falando absolutamente sério. — Ele suspira — Não fiquem com ciúmes, meninas, mas esse aqui foi um dos mais gostosinhos que comi. Apertadinho. Vocês não são mais assim.
A largou. Caminhou pela sala lentamente em direção à porta coçando o volume na calça. Antes de deixar o ambiente, no entanto, jogou por cima do ombro:
— Não precisa me esperar vestida hoje, putinha. — Saiu.

O corpo caiu mole no chão com um baque surdo. Deslizou os braços através de si mesma e abraçou os joelhos, deixando-se notar o filete de sangue que escorria entre suas pernas e suas nádegas. Sua expressão era a de alguém sendo queimado vivo. Ninguém havia mexido um músculo sequer durante todo aquele tempo. Valentina compadeceu o olhar. Todas haviam passado por aquele mesmo sofrimento quando chegaram ali de diferentes lugares, diferentes culturas, diferentes lares. Os motivos, no entanto, eram o tabu. Valentina perguntou-se o que aquele ser tão frágil estava fazendo ali. Claramente não por vontade própria. Mas quem ali estava? Valentina enxergou a si própria naquele corpinho mundano, anos atrás, sendo vendida pela família que devia amá-la. Um beco escuro, uma pulseira de ouro e tudo estava feito. Valentina conhecia a sensação. Mas não podia fazer nada. Absolutamente nada.

Olhou o relógio. As horas já estavam avançando. Não se ouvia mais o trânsito caótico lá fora nem sentia-se o cheiro cítrico da falsa bruma. As garotas se remexiam quietamente, ninguém arriscando um barulho maior. Aos poucos iam saindo do quarto em silêncio, deixando para trás suas próprias memórias jogadas ao chão. Não elas, as memórias. Bom, elas também. Valentina viajou o olhar do relógio à garota jogada no chão. Fechou os olhos e deixou o pente que ainda segurava cair. Com passos duros e melancólicos, acompanhou o próximo lote de garotas na saída e deixou no quarto a Valentina que um dia fora ela, jogada ao carpete sujo de um sangue que não seria limpo, agonizando as dores físicas e emocionais da inocência perdida.

4 comentários:

  1. Uau! Que conto, Maria Luiza. Meus parabéns. Mesmo. Adorei o estilo, me parece maduro, e a forma como você constrói o espaço do enredo; já quero conversar com você amanhã a respeito!

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  2. Impressionante, é o q me cabe a dizer. Vi o link do seu blog no grupo Autores Online do Face. Vc pensa em escrever roteiro? Já pensou em transformar Valentina numa série?
    Enfim, parabéns.

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    1. Obrigada! E sim, Zih, eu pensei em transformar Valentina em uma série. Mais ainda, uma série de contos. Estou trabalhando neles!

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